Meu interesse pela composição e criação de arranjos musicais vem desde a época em que tive meus primeiros contatos com os festivais de música nativa do Rio Grande do Sul. Esse interesse ocorreu porque, observando esses festivais, tive a oportunidade de conhecer alguns compositores populares e, em função de os grupos musicais envolvidos no evento realizarem ensaios recorrentes entre a primeira e a segunda noite eliminatórias, pude acompanhar finalizações de arranjos das músicas concorrentes.
Esse contato se deu porque, em São Francisco de Paula, cidade onde nasci, anualmente é organizado o Ronco do Bugio, festival de música nativa cujo ritmo característico é o Bugio1. Durante os três dias de festival, algumas famílias da comunidade costumam oferecer suas residências aos músicos para pouso e banho. Minha família de ambos os lados, materno e paterno, mantinha tal hospitalidade. Nesse costume familiar de hospedar os músicos, meu pai, Airton Costa, teve grande influência. Há um bom tempo ele já vinha acompanhando como ouvinte os festivais de música nativista que mais lhe chamavam atenção. Esse convívio com o meio o incentivou a escrever letras para canções, e, em parceria com o compositor riograndino Marco Araujo, participou como concorrente de alguns festivais gaúchos, entre eles, o Ronco do Bugio. Havia na minha família também um forte apreço às obras de Chico Buarque, Caetano Veloso, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, entre outros compositores da chamada MPB. Lembro que ouvíamos muita música em casa. Porém, o bugio era uma realidade, estava vivo, e eu podia ver e conviver de perto com o processo de construção de uma música, desde o ensaio até sua premiação no festival. Nesse contexto cultural então fui criado.
Comecei a tocar, de fato, aos treze anos de idade, período em que meu avô paterno, músico de seresta que tocava clarinete e violão, e figura singular na minha educação, ensinou-me algumas músicas no violão. Desde então, comecei a me envolver mais diretamente com a execução instrumental e, consequentemente, com a elaboração informal de pequenos arranjos musicais. Esses arranjos resumiam-se a construir estruturas musicais com base em músicas já conhecidas minhas, sobre as quais eu organizava as notas da canção no braço do instrumento, de forma que a melodia ficasse em destaque, na maioria das vezes, como notas mais agudas, fazendo as pontas dos acordes, e que os espaços fossem preenchidos com outras notas da harmonia, no ritmo original em que a música foi composta. Nessa época, aprendi a leitura de cifras através de revistas que ensinam a tocar violão e pelo contato com os músicos que por vezes frequentavam a nossa casa. Nesse período, comecei a estudar, como autodidata, um pouco de notação musical tradicional. Depois, senti necessidade de estudar violão com um professor. Procurei, então, uma escola de música, pois queria estudar violão clássico. Sem saber muito sobre o que tratava esse tipo de estudo, tinha apenas a noção que eu iria aprender a solar músicas e a ler partituras. Estudei violão com o Montenegrino Daltro Keenan Junior, na extinta Escola de Música SONARTE, em Novo Hamburgo, cidade onde eu morava. Essa foi uma fase muito significativa para o meu crescimento como instrumentista, onde conheci a escola de Abel Carlevaro e desenvolvi consideravelmente a minha técnica violonística.
Mais tarde, consegui um emprego como acompanhador de coros no Projeto Meninas Cantoras do Rio Grande do Sul. Esse projeto é uma idealização do regente Daniel Valadares, com o qual trabalhei durante seis anos. Esses coros são vinculados a colégios privados ou a fundações culturais das cidades onde existem. Há coros em Bom Princípio, Nova Petrópolis, Campo Bom e Novo Hamburgo. Nesses coros eu realizava o acompanhamento harmônico e as transcrições das músicas que queríamos ensaiar e não tínhamos a partitura. Nessas transcrições, eu muitas vezes adaptava as tonalidades para se ajustarem melhor à tessitura vocal dos coros femininos – vozes claras. Numa espécie de arranjo, cheguei a criar outras vozes para serem cantadas no conjunto, mas eram basicamente notas da harmonia com alguma divisão rítmica. Nada que eu já não tivesse praticado no violão. Também não eram raras as vezes em que fazíamos esse trabalho em conjunto, eu, o regente e as cantoras, criando assim um arranjo coletivo que ficava como autoria do grupo com o qual estávamos trabalhando. Nos horários em que os coros faziam seus aquecimentos, técnica vocal e ensaio de naipes, eu oferecia aulas de violão para os interessados da comunidade. Por meio desse projeto, tive a oportunidade de realizar algumas viagens nacionais e internacionais, de me familiarizar com o palco e de adquirir um pouco de experiência como professor de instrumento e teoria musical. Porém, meu interesse maior sempre foi pela criação musical. Minha idéia era mesmo a de montar uma banda ou participar de trabalhos autorais de compositores locais, atividade essa que realizo com maior frequência atualmente. Hoje, toco com orquestra de sopros, sob a regência do Maestro Garoto, integro um conjunto de música de câmara autoral, sob orientação do Maestro Tasso Bangel, defendo músicas de diversos compositores em festivais populares como instrumentista, produzo arranjos e leciono violão.
Por conta de ter trilhado esse caminho prático/criativo/musical, penso, hoje, que é na criação musical que o músico obtém um entendimento mais completo do material sonoro sobre o qual está atuando. Sustentando tal entendimento, transporto esse modo de me relacionar com música às aulas de instrumento que leciono. Swanwick e França (2002) afirmam que “a composição musical assume uma forte natureza assimilativa, pois envolve um extenso jogo imaginativo e permite mais liberdade do que outras formas de expressão musical”. Para os autores, “a composição é um processo essencial da música devido à sua própria natureza: qualquer que seja o nível de complexidade, estilo ou contexto, é o processo pelo qual toda e qualquer música é gerada” (SWANWICK e FRANÇA, 2002, p. 8).
Minha idéia de trabalhar com a criação musical é no sentido de inseri-la no processo de desenvolvimento musical do aluno, como um fio condutor que perpassa o crescimento técnico e reflexivo do estudante, conjugada com a execução de um repertório simpático ao indivíduo. Penso que estudar música seja a união da capacidade de pensar/manipular música – entendendo sobre harmonia, fraseado, dinâmica, ritmo, enfim, todo o conteúdo que existe em qualquer produto musical, e que abrange diversos níveis de complexidade conforme a profundidade com a qual o compositor se utiliza desses recursos, com a capacidade de execução instrumental do educando. O papel da performance instrumental é de promover uma vivência musical criativa, expressiva, relevante e musicalmente significativa, através de um repertório apropriado e tecnicamente acessível, que favoreça o desenvolvimento da compreensão musical dos alunos (FRANÇA, 1998; REIMER, 1989, apud FRANÇA e PINTO, 2005, p. 30). Ao compor, os alunos têm a oportunidade de colocar sua técnica não simplesmente mecanicamente, mas musicalmente, ou seja, para realizar sua concepção musical. A adequação do repertório ao aluno envolve também um aspecto afetivo, como preferência e gosto pessoais em relação a nuanças de expressividade e estilo. Ao tocar suas criações, o estudante está tocando o que é apropriado para seus dedos e mãos, e expressando seu próprio fluxo de idéias, com seus significados, formas, caráter e personalidade (FRANÇA e PINTO, 2005, p. 30).
Como não poderia deixar de ser, minha experiência de prática musical em conjunto marca com um importante traço o meu modo de ensinar. No entanto, o trabalho com um grupo de alunos adquire outras particularidades. No conjunto, para poder interagir musicalmente e de forma construtiva, se faz necessário que o estudante esteja constantemente atento aos sons que seus colegas estão produzindo, para que possa expressar suas ideias com a finalidade de criar uma unidade musical no conjunto. Para o professor, o foco deixa, então, de ser o aluno e passa a ser o grupo. Nesse caso, o grupo assume uma característica única e funciona como organismo vivo e independente. Isso acontece devido às impressões pessoais que cada indivíduo põe na música que está sendo composta e executada pelo grupo. Assim como na sociedade, no grupo musical o individuo cumpre sua função com obrigações, deveres e direitos. A prática musical estabelecida no conjunto de atividades de composição, abrangendo a apresentação e a crítica dos trabalhos, pode ser entendida como um recurso de coerência na comunidade, que engloba engajamento mútuo, empreendimento conjunto e repertório compartilhado (WENGER, 2008 apud BEINEKE, 2009, p. 244).
1 Primata das matas do Rio Grande do Sul, o bugio, como é conhecido, dá nome a um gênero musical e a uma dança com características particulares.
Diego Costa.