domingo, 17 de fevereiro de 2013

Maestro RADAMÉS GNATTALI

Link: https://www.youtube.com/watch?v=WOzvx5vPvWg

Sobre a música por Karl Paulnack, via Maestro Armandinho Ferrante

Sobre a música
por Karl Paulnack, via Maestro Armandinho Ferrante

Um dos maiores medos de meus pais, eu acho, era que a sociedade não me daria o devido valor como músico, que eu não seria reconhecido. Eu tinha ótimas notas no colegial, era bom em ciências e matemática, e eles imaginaram que eu seria mais valorizado como médico, químico ou engenheiro do que como músico. Eu ainda me lembro do comentário de minha mãe quando anunciei minha decisão de ingressar numa escola de música. Ela disse “você está DESPERDIÇANDO as boas notas que tirou no vestibular” . De alguma forma, acho que meus pais não estavam muito seguros do valor que a música tinha, de qual era o seu propósito. E olhe que eles ADORAVAM música, e escutavam música clássica o tempo todo. Eles só não estavam muito certos quanto a sua função. Então, deixe-me fala um pouco sobre isso, porque nós vivemos numa sociedade que coloca a música no caderno de “artes e entretenimento” do jornal, e a música séria, do tipo que seus filhos estão por comprometer, não tem nada a ver com entretenimento, e na verdade é o oposto disto. Vamos então falar um pouco sobre música, e como ela funciona.

Os gregos da Antigüidade foram o primeiro povo a compreender como a música realmente funciona. E isto os irá fascinar: os gregos diziam que música e astronomia eram lados diferentes da mesma moeda. Astronomia era vista como o estudo das relações observáveis e permanentes entre objetos externos, e a música era vista como estudo das relações invisíveis, internas, de objetos internos. A música tem a vocação de nos colocar em contato com as grandes e invisíveis peças em movimento dentro de nossos corações e almas, e de nos ajudar a calcular a posição das coisas dentro de nós. Deixe-me dar alguns exemplos de como isto funciona.

Uma das mais profundas composições de nosso tempo é o “Quarteto para o Fim dos Tempos”, escrito pelo compositor francês Olivier Messiaen, em 1940. Messiaen tinha 31 anos quando a França declarou guerra à Alemanha nazista. Ele foi capturado pelos alemães em junho 1940, e cruzou a Alemanha em um vagão de carga para ser encarcerado num campo de concentração.

Messian teve sorte de conhecer um guarda que simpatizou com ele e que lhe arrumou papel e um lugar para compor. Havia ainda outros três músicos no campo, um violoncelista, um violinista e um clarinetista, e Messiaen escreveu seu quarteto tendo em mente estes três músicos em específico. A obra foi apresentada em janeiro de 1941 para quatro mil prisioneiros e guardas do campo. Hoje ela é uma das mais famosas obras-prima do repertório.

Tendo em vista o que a gente tem aprendido sobre a vida em campos de concentração, por que alguém em sã consciência desperdiçaria tempo e energia compondo ou escrevendo música? Quase não havia energia suficiente em um bom dia para achar água e comida, para evitar uma surra, para permanecer aquecido, para escapar da tortura. Por que alguém se importaria com música? E mais: nos campos de concentração havia poetas, músicos e artistas plásticos. Não foi apenas um único fanático como Messiaen, mas muitos, muitos outros criaram arte. Por que? Bem, num lugar onde as pessoas estão preocupadas apenas com a sobrevivência, nas necessidades mais básicas, a conclusão óbvia é que a arte deve ser, de alguma forma, essencial para a vida. Nos campos de concentração não existia dinheiro, não existia esperança, não existia comércio, não existia diversão e respeito, mas existia arte. Arte é parte da sobrevivência. Arte é parte do espírito humano, uma inextinguível expressão de quem somos. A arte é uma das maneiras de dizermos “estou vivo, e minha vida tem significado”.

Em 12 de setembro de 2001 – no dia seguinte ao atentado às Torres Gêmeas – eu morava em Manhattan. Naquela manhã alcancei um novo entendimento de minha arte e de sua relação com o mundo. Às dez horas daquela manhã fui ao piano para estudar, como de costume. Eu fiz isso por força do hábito, sem pensar a respeito. Eu levantei a tampa do teclado, abri uma partitura, coloquei minhas mãos sobre as teclas e em seguida as retirei. Fiquei lá sentado e pensando se aquilo era importante. Não era completamente irrelevante? Tocar piano agora, dado o que acabara de acontecer naquela cidade, parecia tolo, absurdo, irrelevante, sem sentido. Por que estou aqui? Qual o lugar de um músico num momento como aquele? Quem precisa de um pianista justamente agora? Eu estava completamente perdido.

Assim, eu e toda a Nova York, iniciamos a jornada de atravessarmos àquela semana. Eu não toquei piano naquele dia, e de fato fiquei a me questionar seu voltaria tocar piano novamente. E então eu observei como nós atravessamos aquele dia.

Ao menos em minha vizinhança, nós não jogamos basquete ou palavras-cruzadas. Nós não jogamos cartas para passar o tempo, não assistimos TV, não compramos, e certamente não fomos ao shopping center. A primeira ação organizada que eu vi em Nova York, neste mesmo dia, foi o canto. As pessoas cantaram. As pessoas cantaram em frente ao corpo de bombeiros, as pessoas cantaram “Nós iremos superar”. Muitas pessoas cantaram “America the Beautiful”. Que eu me lembre, o primeiro evento público organizado foi o réquiem de Brahms, depois de uma semana, no Lincoln Center, com a Filarmônica de Nova York. A primeira organização pública de pesar, nossa primeira resposta pública a esse evento histórico, foi um concerto. Este foi o início de um entendimento de que a vida poderia continuar. O exército protegeu o espaço aéreo, mas a recuperação foi conduzida pelas artes, e naquela noite, pela música em especial.

Destas duas experiências, eu venho a concluir que a música não faz parte das “artes e entretenimento” tal como caderno do jornal nos quer fazer acreditar. Ela não é luxo, algo supérfluo que pagamos com as sobras de nossos orçamentos, não é um brinquedo, um mero divertimento ou passatempo. Música é uma necessidade básica para a sobrevivência humana. Música é uma das maneiras que darmos sentido a nossas vidas, uma das maneiras de expressarmos nossos sentimentos quando não temos palavras, um meio para compreendermos coisas em nossos corações quando não podemos fazê-lo com nossas mentes.

Alguns de vocês talvez conheçam o tocante “Adagio para Cordas” de Samuel Barber. Talvez você não o conheça pelo nome, mas pode ser que alguns de vocês o conheçam como música incidental para o filme “Platoon”, de Oliver Stone, que passa na Guerra do Vietnã. Se você conhece esta peça de outra forma, você conhece sua incrível capacidade de cortar o coração; ela pode fazer você chorar sobre tristezas que você sequer sabia que possuía. A música consegue se infiltrar em nossa noção de realidade para nos mostrar o que de fato está acontecendo dentro de nós, do mesmo modo que um bom terapeuta faria.

Eu aposto que você jamais esteve num casamento onde não havia qualquer tipo de música. Pode até ser que só tenha tido pouca música, ou que a música fosse realmente ruim, mas aposto que havia alguma música. E algo muito previsível acontece em casamentos: as pessoas se vêem confrontadas como todo tipo de emoção, e então há algum momento musical onde a ação do casamento pára, e então alguém canta ou toca uma flauta ou algo assim. E ainda que a música seja meio capenga, mesmo que não seja de boa qualidade, cerca de trinta a quarenta por cento dos convidados irão chorar por alguns instantes logo após que a música começar. Por que? Os gregos! A música nos permite mover essas grandes e invisíveis peças dentro de nós e rearranjá-las em nosso interior de forma a podermos expressar o que sentimos, mesmo quando não conseguimos colocar isto em palavras. Consegue se imaginar assistindo “Indiana Jones”, “Super-homem” ou “Guerra nas Estrelas” com diálogos, mas sem música? E o que dizer de um dado momento em “ET – o extra-terrestre” onde o crescendo da música faz com que todos na platéia a chorarem no mesmo instante? Eu garanto que se você me mostrasse o filme sem música nada disso ocorreria. Os gregos: música é a compreensão das relações entre objetos invisíveis e internos.

Mas deixe-me dar mais um exemplo, uma história da maior importância em minha vida. Eu devo dizer que eu toquei em quase mil concertos em toda minha carreira até agora. Toquei em lugares que julgava importantes. Eu gosto de tocar no Carnegie Hall, gostei de tocar em Paris e me fez muito bem cair nas graças da crítica de São Petersburgo. Toquei para pessoas que pensava serem importantes, tais como críticos de grandes jornais e chefes de estado. Mas o mais importante concerto de toda minha vida ocorreu num asilo na cidade de Fargo, Dakota do Norte, há uns quatro anos atrás.

Eu estava tocando com um violinista que é um grande amigo meu. Nós começamos o concerto com a Sonata de Aaron Copland, como de nosso costume, que foi escrita durante a Segunda Guerra Mundial e foi dedicada a um amigo de Copland, um jovem piloto que foi abatido durante a guerra. Nós freqüentemente preferimos conversar com a platéia sobre as peças que iremos tocar do que distribuir libretos com comentários sobre o programa. Mas nesse caso, por conta de iniciarmos o concerto com esta peça, decidimos falar sobre ela depois, e começamos a tocar sem maiores explicações.

Na metade da peça, um idoso sentado logo na frente, numa cadeira de rodas, começou a chorar. Era visível que este homem, que vim a conhecer depois, foi um soldado, pois mesmo com seus setenta e poucos anos estava claro pelo seu corte de cabelo e sua postura de general que ele tinha passado boa parte de sua vida no exército. Achei estranho que alguém caísse em lágrimas por causa de um movimento em específico de uma peça tão específica, mas não era a primeira vez que eu via alguém chorando durante um concerto. Então nós seguimos em frente e terminamos a peça.

Antes de tocarmos a próxima peça do programa, decidimos então falar sobre a primeira e a segunda peça, e descrevemos sob quais circunstâncias Copland a compôs e a dedicatória ao piloto morto. O homem ficou tão perturbado que ele teve que deixar o auditório. Honestamente, achei que não o veríamos novamente, mas, no final das contas, ele foi aos bastidores, em lágrimas, para se explicar.

Eis o que ele nos disse: “Durante a Segunda Guerra Mundial eu era piloto, e eu estava em um combate aéreo quando um dos aviões de minha esquadra foi abatido. Eu vi meu amigo saltar, vi seu pára-quedas aberto, mas os aviões japoneses que estavam nos perseguindo retornaram e metralharam através das cordas do pára-quedas, de forma a separá-lo do piloto, que eu vi cair no oceano, imaginando que o havíamos perdido. Eu não tinha pensado sobre isso por muitos anos, mas durante a primeira peça que vocês tocaram, esta memória retornou de forma tão vívida que pensei estar revivendo tudo isso. Eu não estava entendendo porque isto estava acontecendo, mas agora, depois que você disse que a peça foi escrita em memória de um piloto desaparecido, não havia o que pudesse fazer para agüentar. Como a música faz isto? Como ela achou esses sentimentos, estas recordações dentro de mim?”. Lembrem dos gregos: música é o estudo de relações invisíveis entre objetos internos. Este concerto em Fargo foi o mais importante trabalho que já fiz. Para mim, tocar para este veterano de guerra e ajudá-lo a conectar-se, de alguma forma, com Aaron Copland, a conectá-lo com as recordações de seus amigos perdidos e a lembrar e chorar por seu amigo foi meu melhor trabalho. É por isso que música é importante.

O que se segue é parte do papo que eu terei, dentro de alguns dias, com os calouros deste ano, quando eu lhes darei as boas vindas. A responsabilidade que eu conferirei a seus filhos e filhas é:

Se estivéssemos numa escola de medicina, e vocês estivessem aqui como estudantes de medicina, estudando apendicectomia, vocês deveriam levar seu trabalho muito a sério, porque vocês imaginariam que em alguma hora alguém iria baixar na emergência médica às duas da manhã e caberia a vocês salvarem aquela vida. Bem, meus amigos, algum dia, às oito da noite, alguém na sua sala de concertos e lhe levará uma mente toda confusa, um coração sobrecarregado, uma alma em frangalhos. E dependerá parcialmente de você, do quão bem você faz seu trabalho, se esta pessoa sairá novamente inteira depois do concerto.

Você não está aqui para divertir os outros, você não tem que se vender. A verdade é que você não tem nada para vender; tornar-se um músico não é como distribuir produtos, tal como vender carros usados. Eu não sou “entertainer” – alguém para divertir e distrair – pois minha profissão está mais próxima a de um paramédico, a de um bombeiro e de alguém que trabalha com resgates. Você não está aqui para ser um tipo de terapeuta da alma humana, uma versão espiritual de um quiropata, um fisioterapeuta, alguém que trabalha com seu interior para ver se as coisas estão alinhadas, para ver se conseguimos ficar em harmonia conosco mesmo e ser bom, saudável e feliz”.

Sinceramente, senhoras e senhores, eu espero que vocês não apenas aprendam música; eu espero que vocês salvem o planeta. Se um dia existir neste planeta uma era de bondade, harmonia, paz, o fim das guerras, o entendimento mútuo, o fim da desigualdade, a justiça, eu não espero que isso venha por parte dos governos, do exército ou das grandes empresas. Tão pouco espero que isto venha das religiões do mundo, que juntas parecem ter nos trazido muito mais guerra do que paz. Se existe um futuro de paz para a humanidade, se existe uma compreensão de como essas coisas invisíveis e internas devem ser conectadas, eu espero que isto venha por parte dos artistas, porque é isso o que fazemos. Tanto no campo de concentração, como no atentado de 11 de setembro, foram os artistas que puderam nos ajudar com nossas internas e invisíveis vidas.

Tradução: Leonardo Martinelli