Mto. Tasso Bangel
1. Este livro, eu aprendi de meus alunos. Quando lecionava, nunca procurei dizer ao aluno, meramente, “o que eu sei”, e então saberiam apenas isso e nada mais. Ou talvez, menos ainda. Porém, tornaram-se conscientes da fonte que gera o importante: A BUSCA! Espero que todos busquem! Porque saberão que somente se busca por buscar. Que o encontrar é, com efeito, a meta, mas facilmente poderá vir a ser o fim do esforço, ou talvez, o entendimento esclarecedor da busca, como recompensa. Os acomodados que amam o conforto, jamais buscarão ali, onde não existia algo já determinado por se encontrar.
2. O som enquanto palavra, em relação a música. Uma palavra (fundamental) com seus sinônimos (harmônicos), pode ser o protótipo de uma sentença escrita, ou falada, ou mais distante ainda; que uma palavra, qualquer palavra, por conter maiores ou menores afinidades de significação com todas as demais, pode tornar-se a síntese das sentenças existentes, assim como, segundo um único som o seria de uma obra musical.
3. ...Em tudo o que vive está contida a sua própria mudança; desenvolvimento e dissolução, a única coisa que é eterna: A MUDANÇA; e o que é transitório: A EXISTÊNCIA. Tudo o que vive já traz em si a própria morte, a vida e a morte coexistem já na mesma origem, o que existe entre elas é o tempo.
4. A ordem que nós chamamos “forma artística” não é uma finalidade em si, mas apenas um recurso transitório.
5. Nenhuma arte é tão cercada em seu desenvolvimento, por seus próprios professores, quanto a música. Pois ninguém vigia uma propriedade mais zelosamente do que aquele que sabe que, ela não lhe pertence. Quanto mais difícil é a legitimação de tal propriedade, maior é o empenho em demonstrá-la. E o teórico, que habitualmente não é artista, ou o é em grau ínfimo (ou seja, não é), tem assim todas as razões para esforçar-se em assegurar sua posição artificial. Se houvesse ateliês de composição musical como há de pintura, ver-se-ia claramente quão supérfluo é o teórico da música, e que ele é tão nocivo quanto as academias de arte. A pintura tem um ensino prático e a música com seus “mestres”, somente ensino teórico. A arte transmite-se e propaga-se através das obras artísticas e não por regras teóricas de beleza.
6. “Um dos meios mais proveitosos para a consecução da forma musical é a tonalidade”. Mas, que destino resulta quando fala do princípio da tonalidade, como de uma lei: “tu deves”... cujo acatamento fosse imprescindível para toda a forma musical. Esse “imprescindível”, parece-nos perceber aí um bafo de coisa eterna; e se te atreves, jovem artista, a pensar outra coisa, terás a todos contra ti; todos os que sabem, faz tempo, tudo o que aqui afirmo, e te denominarão de charlatão, e serás caluniado: “queres enganar e blefar”; cuidado com os teóricos conservadores. Ao diabo com todas essas teorias que servem, apenas para colocar freios ao desenvolvimento da arte.
7. Afirma-se, por exemplo: “isto soa bem, ou mal” (mais justo seria dizer “belo” ou “feio”). Em primeiro lugar, isto é uma presunção e, em segundo, um juízo estético. Se tal estabeleceu-se infundadamente, por que merecem crédito? É necessário acreditar na autoridade do teórico? Por quê? Quando não oferece razões, ele diz só o que sabe (não por haver descoberto a partir do próprio esforço, mas por ter aprendido assim) ou diz o que todos acreditam (por ser uma experiência comum). Mas a beleza não é algo da experiência de todos, senão, quando muito, da experiência de alguns. Estes juízos de belo e feio são excursões absolutamente imotivadas ao campo estético, que nada tem a ver com o todo da construção. As quintas paralelas soam mal (por quê?); esta nota de passagem é dura (por quê?); os acordes de nona não existem, ou então soam duros (por quê?). Onde residem no sistema as razões comuns básicas para estes “por quês?” no sentimento do belo com esse sistema? Com este sistema, por favor!!! Um autêntico sistema deve, antes de tudo, possuir fundamentos que abarquem todos os acontecimentos, como são as leis naturais. Repito: as leis naturais não conhecem exceções; as teorias da arte compõem-se, antes de tudo, de exceções.
8. Neste livro, gostaria de expor, abrir, ocasionalmente, através de hipóteses, perspectivas de relações mais complexas; das semelhanças e afinidades entre a criação artística e outras atividades humanas; das relações recíprocas entre o que se dá na natureza fora de nós e o sujeito operante contemplador. O que digo a esse respeito não pretende ser tomado como teoria, mas como analogias mais ou menos desenvolvidas, onde o mais importante não é que elas sejam corretas em todos os aspectos, senão ocasionem um programa físico ou psicológico mais amplo. Talvez chegue o dia em que o nível do músico médio tenha-se elevado tanto que não precise mais de “compêndios” ou de livros ilustrados, ainda não haja passado a época para os pensamentos que tenho a dizer.
9. A arte é, em seu estágio mais elementar, uma simples imitação da natureza. Mas logo se torna imitação num sentido mais amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas também da interior. Em outras palavras: não representa, simplesmente os objetos ou circunstâncias que produzem a sensação, eventualmente sem considerações ao “que”, “quando” e “como”. E a posterior conclusão acerca do objeto externo, provocador da impressão, reduz-se à causa de sua insignificante presença imediata. Em seu nível mais alto, a arte ocupa-se, unicamente, em reproduzir a natureza interior. Nesse caso, seu objetivo é a imitação das impressões que, através da associação mútua e com outras impressões sensoriais, conduzem a novos complexos, novos movimentos. Nesse nível, a conclusão quanto ao motivo exterior é quase de uma insuficiência indubitável.
10. O material da música é o som, o qual atua diretamente sobre o ouvido. A percepção sensível provoca associações e relaciona o som, o ouvido e o mundo sensorial. Da ação conjunta destes três fatores depende tudo o que em música existe de arte. Talvez seja insustentável querer derivar de um só dos componentes, por exemplo, o som, tudo o que constitui a física da harmonia. Algumas peculiaridades, todavia, poderiam ser deduzidas assim, dado que o ouvido possui uma disposição específica para a recepção do som que se correspondo com a disposição mesma do som, como uma parte côncava se corresponde com uma convexa.
11. As expressões consonância e dissonância, usadas como antíteses são falsas. Tudo depende, tão somente, da crescente capacidade do ouvido analisador em familiarizar-se com os harmônicos mais distantes, ampliando o conceito de “som eufônico, suscetível de fazer arte”, possibilitando, assim, que todos esses fenômenos naturais tenham um lugar no conjunto. O que hoje é distante amanhã pode ser próximo; é apenas uma questão de capacidade de aproximar-se. Já que tenho de operar com esses conceitos, definirei consonância como as relações mais próximas e simples com o som fundamental, e dissonância como as relações mais afastadas e complexas, a partir da série harmônica. As consonâncias originam-se dos primeiros harmônicos e são tão mais perfeitas quanto mais próximas estiverem do som fundamental. Ou seja: quanto mais próximas estiverem desse som fundamental, mais fácil será para o ouvido reconhecer sua afinidade com ele, situa-las no complexo sonoro e determinar sua relação com o som fundamental enquanto harmonia “repousante”, que não requer resolução. O caminho da história nos mostra a dificuldade com a assimilação das dissonâncias, devido às distâncias do som fundamental, inclusive com escalas estranhas de diversos povos, que invocariam uma relação com a natureza, sem um sistema temperado como o nosso. Talvez seja o nosso sistema, mais vantajoso, mas não superior.
12. O descobrimento da nossa escala foi um feliz acaso para o desenvolvimento de nossa música, não só pelos resultados obtidos, como também porque poderíamos ter outra sucessão diferente, como os árabes, os chineses, os japoneses ou ciganos. O fato de a música deles não ter se desenvolvido até a mesma altura da nossa não é, necessariamente, por conseqüência da imperfeição de suas escalas, mas pode dever-se à imperfeição de seus instrumentos ou a alguma circunstância casual, que não é possível investigar aqui. Seja como for, não devemos o desenvolvimento de nossa música somente ao descobrimento de nossa escala e acima de tudo: semelhante escala não é o fim, a meta última da música, mas tão somente uma etapa provisória. A sucessão de harmônicos superiores, que levou o ouvido a descobri-la, contém ainda muitos problemas, os quais terão de ser discutidos, é uma questão de tempo.
13. Nada é definitivo na cultura, tudo é tão somente preparação para um grau mais alto de desenvolvimento, para um futuro que, por enquanto, apenas podemos idealizar de forma imprecisa. E essa evolução não terminou, ainda não foi transposto o ponto culminante. Ela só começa agora, e talvez nunca se conquiste tal ponto supremo, pois esse sempre poderá ser ultrapassado, sempre virá mais uma onda e não podemos dizer “aqui flui a última onda”.
14. Ao verdadeiro artista nem é possível instruí-lo. Quando se mostra a ela “como se deve fazer”, alegando que outros também fizeram assim, tal pode ser um instruir sobre a arte, mas não a instrução do artista. A capacidade de expressar-se certamente não depende da espécie e da quantidade de meios artísticos colocados à disposição. Mas a incapacidade sim! Esta só pode desenvolver-se por meios de recursos artísticos, pois não existe graças ao que nasce de si mesma, mas vive do que os outros produzem. Por que o verdadeiro artista não escreve “o que é conforme a arte”, mas sim “o que é conforme o artista”.
15. Por que tem que haver leis de beleza? O saber do artista nada tem a ver com leis de beleza. É possível que outros queiram aplicar leis de beleza às suas obras, já que não podem viver sem leis de beleza; é um assunto só deles. Existem músicos mais sensíveis à pintura do que muitos pintores, e pintores que são mais sensíveis à música do que a maioria dos músicos. As leis existem para quem necessita delas, como os críticos, mas não para o artista. Nada o medíocre receia mais do que ser coagido a trocar a sua concepção de arte, de vida.
16. O artista que tem coragem abandona-se completamente ás suas inclinações. E somente quem se abandona às suas inclinações é artista. Eis então uma personalidade. Um novo homem! Aí está um exemplo do desenvolvimento do artista, do desenvolvimento da arte. O que de melhor se pode é comparar ao aparecimento do novo, é com o florescer de uma árvore. O novo brota do que outrora foi novo; virá daí a destruição do antigo; é assim que a arte se renova.
17. O que importa é a capacidade de escutar-se a si próprio, de contemplar-se a si mesmo profundamente, algo que dificilmente pode ser obtido, e que seja como for, não pode ser ensinado, é um encontro consigo mesmo, com um julgamento de caráter verdadeiro.
Composição-Arranjo Mto. Tasso Bangel